“A gente vai arrombar as portas desse mundo. Independe se você é trans, mulher, preta, parda ou de povos originários. A gente existe e vai ocupar tudo o que é espaço”. Esse desabafo da programadora Nathally Souza, de 32 anos, reflete a luta de uma profissional que precisa, diariamente, lidar contra o preconceito vivendo no país que mais mata travestis e mulheres trans, segundo o relatório de 2021 da Transgender Europe (TGEU). Quem vê a carreira bem-sucedida que desenvolve na tecnologia, após se formar no Recode Pro, no entanto, nem imagina quantos obstáculos precisou enfrentar para colher os frutos do sucesso.
Apesar do nome Nathally ter apenas dois anos, a garra, a inteligência e o talento vêm de longa data. Para entender essa história, é preciso voltar no tempo, até os anos 90, quando nascia no Rio de Janeiro e, ainda criança, embarcava com a família rumo a São Luís, no Maranhão. Filha de pai militar, transferido para trabalhar na cidade, viu a mãe enfrentar e vencer uma depressão, com a ajuda de uma igreja evangélica. Teve, no entanto, uma infância onde nunca faltou nada dentro de casa: “Meus pais sempre se esforçaram para cuidar muito bem da família”, ratifica.
Embora sempre tenha sido tratada como um menino no círculo familiar e social, tinha muita curiosidade e gostava de brincar e se vestir como uma princesa. No início da adolescência, já sentia vontade de viver como uma menina. Tudo, entretanto, era muito bem escondido. “Eu não tinha muita noção, mas aquilo, naquele momento, na minha cabeça, era errado”, ressalta.
E foi exatamente assim durante boa parte da vida. Até mesmo no final dos anos 2000, quando decidiu prestar vestibular. Por mais que gostasse de tecnologia, era também apaixonada por futebol e, por isso, foi aprovada para o curso de Rádio e TV na Universidade Federal do Maranhão (UFMA).
Aquele sonho de trabalhar com o esporte deu certo e, por quase 10 anos, teve uma carreira bastante promissora na Comunicação. Virou repórter esportiva de grandes veículos locais, passando por rádio, jornal e internet. Na época, ainda se identificava como homem cisgênero. “Hoje, falo com muita tranquilidade que eu fingia esse papel”, conta a jovem.
Mas, o destino começa a mudar em 2018. Insatisfeita com o desgaste da rotina de trabalho daquela profissão, passa por uma crise de ansiedade e um início de depressão. Com ajuda psicológica, segue em frente e decide, dois anos mais tarde, partir para São Paulo para morar com uma pessoa com quem mantinha um relacionamento. A ideia era investir em um negócio próprio.
Só que aquele projeto que vinha sendo construído com tanto cuidado, investimento e trabalho se depara com uma situação totalmente inesperada: a pandemia. Nesse período, como em um piscar de olhos, tudo desmorona, com os problemas surgindo todos ao mesmo tempo. Chegava ao fim o sonho de empreender e o relacionamento amoroso.
Apesar das notícias ruins, se engana quem acha que o mundo é feito apenas de pessoas ruins. Em um ato de grande respeito, carinho e empatia, a ex-companheira não a deixou na mão, fazendo com que elas seguissem morando juntas. Aquele relacionamento, então, se transformou em amizade, que segue viva até hoje: “Ela não tinha a menor obrigação de me abrigar, mas abriu as portas para mim e me ajudou muito nesse período”, agradece.
A vida não estava fácil. O dinheiro, era contado. Por mais que não deixasse transparecer, contudo, a falta de emprego a agoniava. Chegou a trabalhar temporariamente como caixa de um supermercado, mas, ao término do contrato, não conseguia se realocar, mesmo enviando currículos incessantemente.
Até que, em um domingo à tarde, enquanto estava sentada no sofá de casa vendo televisão, é surpreendida com um comercial que anunciava inscrições abertas para uma formação gratuita em programação: era o Recode Pro. O gosto antigo pela tecnologia desperta e pensa: “por que não tentar?”.
Por mais que algumas pessoas mais próximas já soubessem da sua identificação, ela participa do processo seletivo ainda com o “nome morto”. E com grande destaque em todas as fases, vai chamando a atenção pela facilidade de aprendizagem e avançando etapa a etapa, até ser aprovada. Assim, já fazendo parte do projeto e prestes a se tornar uma desenvolvedora full stack, toma uma importante decisão que a liberta dos antigos medos e opressões: “eu sou a Nathally!”
Agora chamada finalmente por seu nome social, Nathally Souza, ela encontrou no Recode Pro não só uma base de conhecimentos técnicos, mas também todo um gerenciamento para lidar com as habilidades socioemocionais e suas aplicações ao mercado de trabalho. Além disso, encontrou no grupo de colegas e educadores, um porto seguro para incentivá-la nas decisões e nesse processo de transição de gênero. “Desde o primeiro momento, todo mundo me acolheu. Eu era só mais uma aluna no meio de tanta gente. Isso foi fundamental para mim. Todo mundo me ajudou e me respeitou”, comemora.
Nathally não só concluiu a formação com sucesso, recebendo vários prêmios e reconhecimentos, como conquistou a tão esperada vaga de emprego. Hoje, é desenvolvedora na Thoughtworks. Mas, não para por aí. Ainda neste ano, além do trabalho na consultoria global de tecnologia, aceitou o convite da Recode e vai atuar como instrutora no Recode Pro, o mesmo projeto que a revelou. “É uma forma de dar um retorno para a sociedade e para o projeto. Ajudar com o capital intelectual é uma forma de ajudar a sociedade”, vibra com a novidade.
Por mais que essa parte da história de Nathally Souza tenha tido um final feliz, a programadora tem a consciência de que nem todas terão oportunidades semelhantes. Nesse caminho, estima ainda mais os projetos que, como o Recode Pro, valorizam as diversidades e acreditam no potencial de pessoas que, muitas vezes, são colocadas à margem de uma sociedade machista, preconceituosa e transfóbica.
“Hoje como a Nathally, essa travesti empoderada, estando no mercado de trabalho e tendo lugar de fala, sei que impacto outras pessoas e posso ajudar a abrir portas. No meu caso, a minha amiga, as minhas colegas de projeto e a própria Recode me estenderam as mãos. Infelizmente, nem todas as mulheres trans e as travestis têm isso, e acabam recorrendo a outros meios, como a prostituição, por exemplo. Não é uma escolha. Colocando esses grupos em destaque, talvez a gente ajude também a abrir a porta para que eles sejam representados”, completa.